O que leva uma família de uma criança ou um adulto a procurar uma avaliação para superdotação varia muito. Mas percebo que há sempre uma inquietação que vem da percepção de que o ritmo de aquisição de algumas (ou muitas) habilidades é diferente dos seus pares. Tem aqueles que tiveram marcos do desenvolvimento neuropsicomotor mais precoce, os que aprenderam a ler e/ou escrever muito cedo e de forma autodidata, os que aprendem muito mais rápido que os demais e os que se destacam nas áreas dos esportes ou das artes. Mas raramente acontece um relato de que aquela pessoa se destaca em “tudo que faz”.
Infelizmente, a superdotação tem pouco espaço nos cursos de neuropsicologia e psicologia de uma forma geral. Na faculdade, temos aulas de testes e aprendemos a aplicar e corrigir alguns instrumentos mais conhecidos. Nos cursos de formação em neuropsicologia os testes cognitivos também são ensinados com um pouco mais de profundidade e sua aplicação em algumas condições neurológicas e psiquiátricas é revista. Na pós-graduação ensina-se sobre os conceitos de inteligência, potencial intelectual e Quoeficiente de Inteligência (QI). Desconheço um curso de neuropsicologia no Brasil que inclua a temática da superdotação em sua grade curricular.
O que acaba acontecendo quando uma pessoa procura um neuropsicólogo ou psicólogo despreparado para trabalhar com a especificidade da superdotação é a simples aplicação de um teste de QI. Afinal, um conhecimento superficial sobre a superdotação é que se trata de uma pessoa com QI superior a 130 (alguns acham que este valor pode ser até de 120). Temos uma lista grande de testes psicológicos que fornecem valores de QI. Desde testes mais rápidos, que levam 20-30 minutos até testes mais complexos e difíceis de aplicar e corrigir que podem levar 2h-3h. Quem só está preocupado em fechar um critério de superdotação por um valor de QI pode trilhar o caminho mais fácil e aplicar o teste rápido. Além de ter uma visão simplista sobre a superdotação, este conhecimento superficial desconsidera a teoria que embasa o desenvolvimento de cada teste e quais as habilidades que são recrutadas para resolver cada atividade. No Teste de Matrizes Progressivas de Raven (um dos “testes rápidos”) são investigadas as habilidades de raciocínio lógico-indutivo. No teste Wechsler de Inteligência (WISC ou WAIS), que leva mais tempo para aplicar e mais treinamento por parte do profissional, são medidas as habilidades de raciocínio lógico-indutivo, raciocínio abstrato, raciocínio viso espacial e raciocínio numérico. Você já pode imaginar como faz muita diferença ir pelo caminho A (Raven) ou B (WISC ou WAIS).
Uma boa avaliação neuropsicológica para a superdotação deve reunir muito mais do que o valor de QI. Isso porque o QI, ou o potencial intelectual, de uma pessoa é um dado isolado. O potencial intelectual de uma pessoa nos conta o nível máximo de desempenho que uma pessoa pode alcançar nas melhores condições ambientais possíveis. Ou seja, num ambiente estimulante, silencioso, sem interrupções e interferências (ambientais ou endógenas). É este ambiente que promovemos em nossos consultórios onde aplicamos os testes cognitivos. Se a pessoa vai de fato aplicar no seu dia-a-dia todo este potencial já é uma outra história. Além disso, superdotação não é sinônimo de um raciocínio lógico fenomenal, embora muitos superdotados tenham essa habilidade aguçada.
Portanto, quando escolho uma bateria de testes cognitivos para investigação de possíveis superdotados escolho testes que nos fornecem dados sobre muitos tipos de raciocínio, já que considero que esta pessoa deverá ter um destaque em diferentes habilidades envolvidas com o processamento de informações. O caminho mais rápido e fácil não é suficiente. Também acho importante incluir testes de domínios cognitivos que vão sustentar o uso da inteligência. Para citar alguns, incluo testes de atenção, memória e aprendizagem e funções executivas (habilidades que estão envolvidas com comportamentos dirigidos a metas). Mas tem mais. Como preciso saber como a pessoa está aplicando este potencial em seu dia-a-dia, faz parte da minha avaliação uma anamnese (entrevista inicial) com os pais ou informante bem detalhada. Nesta entrevista vou fazer perguntas para entender quais são as áreas de destaque, os comportamentos que chamam a atenção, o desempenho desta pessoa no contexto pedagógico ou profissional. Pergunto sobre o desenvolvimento, interação com crianças mais velhas e mais novas. No caso das crianças costumo pedir para ver o histórico escolar e conversar com a escola. Com os adultos, pergunto sobre a trajetória educacional e profissional e como esta pessoa é vista por seus colegas de trabalho e família.
Como nem tudo é um “mar de rosas”, também quero saber sobre as dificuldades e áreas de atenção. No próximo post irei abordar a dupla excepcionalidade, uma condição em que uma pessoa além de ser superdotada tem um transtorno comportamental ou do neurodesenvolvimento. Neste cenário uma avaliação neuropsicológica composta de testes de diferentes domínios cognitivos, além da inteligência ganha relevância ainda maior.
A identificação de um sujeito superdotado é um processo complexo. O diagnóstico de superdotação ou a exclusão desta hipótese diagnóstica tem um impacto emocional importante para a pessoa e sua família. Este diagnóstico também pode implicar em um trajeto educacional e na solicitação de medidas educacionais específicas. Portanto, antes de agendar uma avaliação neuropsicológica ou psicológica com um profissional, entenda qual é o background desta pessoa e o seu conhecimento e prática na área da superdotação.
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