Ontem a noite fiz uma sessão de cinema com a minha filha mais velha. Ela escolheu assistir o filme Divertida Mente
(filme de 2015, disponível no Netflix) e eu me deliciei. Acho que é um dos meus filmes de animação favorito. Mal sabia ela a oportunidade que me dava para refletir sobre a implicação dos nossos tempos atuais sobre nossas emoções. Foi incrível, nos divertimos. Coloquei ela para dormir e fui rever o filme. Passado a leveza do divertimento (rs – aproveitando o trocadilho) comecei a prestar atenção na história de forma mais detalhada e fazer paralelos com a vida em isolamento devido ao Covid-19. Vou compartilhar minha reflexão com vocês, na expectativa de trazer um pouco de luz e auxiliar na compreensão das angústias que muitos estão convivendo recentemente.
A história nos apresenta cinco emoções que acompanham a protagonista Riley em seu dia a dia. A alegria, tristeza, nojo, medo e raiva. Até os 45 minutos do segundo tempo, a alegria assume o papel de protagonista. É ela quem controla o painel de controle. Vê o lado positivo das situações, afasta as outras emoções desagradáveis de cena e vai acumulando memórias felizes (bolas amarelas) ao longo dos dias que se tornam memórias base de longo prazo. As memórias base são os registros importantes de vida de Riley e que definem a sua identidade. O trabalho de alegria é exaustivo. Nada pode atrapalhar a experiência de bons momentos e as demais emoções têm pouquíssimas chances de aparecer. A tristeza, coitada, é a vilã. Deve ser afastada a todo custo, ocupada com atividades pouco importantes e distraída pela alegria para não atrapalhar as memórias e momentos de Riley.
Uma mudança inesperada de cidade apresenta um desafio de adaptação gigantesco para a menina. Riley e suas emoções não têm repertório prévio para lidar com todas as mudanças. A cidade é nova, a casa é feia, a escola, professora e colegas são desconhecidos! No meio dessa confusão a alegria, tentando salvar Riley dos maus momentos à todo custo, se atrapalha e ela e a tristeza são sugadas para fora da cabine de comando. Sobram na cabine o nojo, medo e raiva. Imaginem só, a pobre Riley enfrentando todas estas novas situações e só podendo contar com emoções que não tiveram nem chance de se desenvolver – afinal, a alegria nunca deixou espaço para mais ninguém. Sem saber o que fazer, as demais emoções começam a tentar simular a alegria - fazendo o que sempre viram a alegria fazendo. Mas fica tudo esquisito. O medo fantasiado de alegria é inseguro, o nojo performando como a alegria é falso e a raiva está sempre à ponto de bala.
Começa então a jornada da alegria e da tristeza para voltar à cabine de comando. Alegria está sempre atenta para que a tristeza não faça besteiras e não transforme as memórias de Riley em momentos sombrios. Mas a tristeza vive tentando aparecer. Ela vem à superfície e é rapidamente afugentada pela alegria. A partir deste momento, bem aos pouquinhos, vamos tendo relances do papel evolutivo da tristeza. A tristeza é empática. Ela consola o amigo imaginário de Riley quando ele se dá conta que está sendo esquecido. Ela é reconfortante.
Algumas cenas para frente, alegria está ficando desanimada após muitas tentativas malsucedidas de conseguir voltar à cabine. A positividade vai cedendo após os retornos negativos e o desespero toma a alegria de surpresa. Neste momento ela revê uma das memórias base de Riley. Era uma bola bem amarelinha, como todas as memórias alegres da menina.Para alegria a memória era sobre um dia muito feliz de Riley em que ela viveu momentos de amor com seus pais e uma comemoração muito calorosa com o seu time de Hockey. Na percepção de tristeza aquela mesma recordação era ruim. Riley estava muito triste e envergonhada neste dia pois tinha perdido um ponto decisivo e seu time tinha perdido a partida.
Vamos lá, então a história desta memória começava com um evento triste (perder o ponto e consequentemente o jogo) e se transformava em um evento feliz (acolhimento dos pais e aproximação do time). Neste momento a história dá uma reviravolta e faltando uns 10 minutos para acabar o filme começamos a ser apresentados para uma conversa muito produtiva entre as emoções. A tristeza pode promover a alegria.
Após esta longa introdução quero voltar para o paralelo entre o isolamento e a pandemia do Covid-19. Notei que em muitos momentos da nossa vida damos à alegria o papel de protagonismo. Buscamos o contentamento, a felicidade, os bons momentos e as memórias de base amarelas. Colocamos as demais emoções de castigo. Quantas vezes driblamos a tristeza com joguetes para que ela fique guardadinha, distante, sem atrapalhar. Ela é ardil, tenta aparecer. Aos poucos, sem percebermos, sai tocando algumas das bolas que vão ganhando a sua cor, azul. Mas com grande esforço, ganhamos controle sobre a situação e jogamos a tristeza de lado, após uma bela de uma bronca. Colocamos ela no seu lugar. Ao menos no lugar que queremos que ela tenha. No cantinho, escondidinha.
Dai vem uma reviravolta da vida. Somos obrigados a ficar em casa, isolados. Não podemos encontrar e estar juntos com pessoas muito queridas. Os dias vão passando, o número de contaminados sobe assim como o número de mortes. Vamos ficando assustados. O medo ganha voz. A raiva pode vir à tona também. O nojo ganha proporções inusitadas com receio de contaminações. A alegria começa a perder a força. Como na história, ela vai ficando desesperançosa, assustada. A energia para manter a positividade começa a ceder. Nesse momento vem a tristeza. Essa desconhecida, que afastamos tantas vezes de perto. Como todas as emoções que foram represadas, ela vem com força. É uma tristeza profunda com o que perdemos e com o que o mundo está perdendo. A nossa tendência natural é nos esforçarmos para engoli-la novamente. No entanto, faço um convite para agirmos de uma forma diferente. Que tal abraçar, acolher a tristeza e refletir sobre o que ela representa evolutivamente?
A tristeza da história e a tristeza nas nossas vidas conecta, aproxima, abre a oportunidade para o diálogo, para as trocas e para o conforto. Neste isolamento forçado, não é justamente a conexão conosco e com os outros o que tanto ansiamos? Hoje é o meu aniversário. Um dia feliz, porém, em meio ao caos. O isolamento entre quatro paredes está muito longe de ser a forma que escolheria para comemorar meu aniversário. Mas sei que ao acolher a tristeza desse momento, apreciarei ainda mais os contatos virtuais que terei com cada um que me mandar boas energias e pensamentos positivos no dia de hoje.
Acredito firmemente que após esta pandemia também ganharemos uma nova cabine de controle, com muitas nuances emocionais novas. O tempo pede que nos recolhemos e que demos oportunidade para as demais emoções terem seu espaço. Vamos ouvir todas as emoções, as boas e as ruins e aprender mais sobre nós. Ao ouvi-las também melhoraremos a nossa escuta e formaremos laços mais próximos com aqueles que amamos.
Patrícia, parabéns pelo seu aniversário!!!!! Não é para menos tanta inspiração!!!!! Você escreveu um texto leve e delicado, falando de um tema tão difícil em um momento tão tenebroso. Trazer para nós a lembrança de que temos muitas outras emoções as quais podem se desenvolver quando a alegria está de molho, sem dúvida, é um presta atenção que todos nós merecemos; encontrar a essência da humanidade dentro de nós e usá-lá com flexibilidade e sabedoria em momentos de crise é nossa missão nestes tempos de pandemia para aprendermos e reaprendermos a amar de verdade! Parabéns pelo texto e que muitas riquezas se revelem filhas do seu aniversário!!!!!